Friday, September 09, 2005

Desterro

O chão que eu piso será salgado, meu nome condenado ao degredo, minha casa à ruína, meus filhos à vergonha, meus pais ao exílio. Nunca mais meu nome deverá ser pronunciado e eu serei o fantasma das noites escuras, a ameaça para as crianças que desobedecem os pais. Meu nome será o segredo de gerações inteiras, até que minha existência torne-se tão fantástica que a crença a engula e eu me torne lenda.

O chão que eu piso e que já foi o teu está agora distante, longe dos meus pés descalços, meus pés suspensos sobre o pequeno banco, um salto e meus pés no ar, o sufoco do laço espremendo de mim a vida e esse vazio sob os pés, o barulho seco do pescoço cedendo, minha última imagem do mundo, este chão.

O chão em que piso e que já foi nosso, correndo os dois, felizes por um dia de sol ou por coisa alguma, sorrindo desarmados e livres, correndo alegres, sem motivo. O sol batia em seus cabelos e o vento trazia o cheiro para mim, o sol despertava em mim a imagem das tuas passadas largas, das tuas ancas redondas querendo-me, eu a segui-las, te seguindo tonto, o teu rosto sobre mim. O sol queria que fossemos os cúmplices dessa luz intensa, cúmplices sem mácula de um dia perfeito, sem mácula, sorrindo os dois para a luz e sendo felizes, sem motivo. Devíamos ter percebido.

O chão que já nos serviu de leito, minhas mãos amparando teus cabelos, um gosto de terra entre teus dedos, meu corpo aninhado no teu como se eu morresse e você fosse a cova macia. Meus desejos contados em cada palmo do seu corpo, deitado entre tuas pernas, sentindo tua pele quente, minhas mãos palmilhando tuas curvas, desejando ser náufrago e te encontrar ilha, mapear tuas enseadas e teus montes, encontrar o ponto melhor para construir morada, seu habitante e seu amigo, recriar com as mãos teu beijo e vibrar junto contigo quando um vulcão explodisse. Devíamos ter percebido.

O chão que depois de você começou a ferir-me as solas, a arder em minhas narinas, puro pó, puro desterro, deixou de ser o chão dos meus passos, teus pés sobre os meus, os dois brincando de dançar. Não quero mais lembrar e me lembro. Não quero lembrar mas não posso mais impedir, não tenho mais o controle, as imagens me desobedecem, obsedam, sedando o que resta de consciência, meu corpo inerte entre os espasmos. Onde começou tudo aquilo que depois me levou a este momento, já o mijo quente escorrendo pelas pernas, já o corpo alheio ao pensamento, quase separado, pensamento tornado independente, corpo solto que ninguém mais vai visitar? Eu devia saber onde, devia saber, onde, onde começou tudo.

Não quero saber onde começou tudo. Quero partir com essa imagem doce, você molhada de orvalho e sorrindo, eu molhado de suor e sorrindo, os dois deitados lado a lado sob um céu azul infinito, na tarde de uma felicidade infinita, ambos infinitamente livres e completos, satisfeitos com o pouco da presença inteira do outro, com o muito que tínhamos pela frente então, com o muito que ainda poderíamos ser. Por que não permanecemos assim, selados eternamente naquela tarde, nós em nosso próprio mundo, fundadores de um continente a parte, cobertos da glória de um futuro perfeito? E nossos futuros filhos, nossos futuros netos que não chegamos a ver, todos ali se admirando da felicidade ímpar de seus ancestrais? Por que não fomos infinitamente tão felizes?

Mais um pouco e o fio de vida que ainda me prende se soltará, mais um pouco e eu não serei mais eu. Mais um pouco e meus olhos estarão vazios e a putrefação começará, outro relógio a medir as carnes, outro cronômetro a contar a diluição das carnes até chegar aos ossos e dos ossos ao pó. Minuto, segundo, a cada ponto um contraponto, a cada ponto um contra, a cada....

Intervalos de tempo. Intervalos. O tempo contado, o tempo, o tempo, percebe? Tem uma brecha em cada ponta, uma antes outra depois, o tem - po, uma no meio. Foi por ali! Foi assim! Não percebe? Foi assim, a água minando a rocha, assim nasceu tudo o que hoje me traz aqui, à vizinhança da morte, foi ali! Foi no meio dos nossos dias felizes que surgiu a mágoa, e dessa mágoa o choro, a água minando, e desse choro a minha morte. Foi no intervalo dos momentos mais completos, mais plenos, dos dias de cumplicidade com o sol, dos momentos que piscamos, que cobrimos os olhos, foi nesses momentos brancos que veio essa dor. Foi quando nos acreditamos eternos, quando juramos nunca mais sermos mais felizes que naquele instante, um pouco antes ou um pouco depois desse instante, foi no suspiro, ali surgiu a dúvida, ali plantamos a suspeita.

Nada em nós gritou, nada em nós se partiu, os sinais de alerta não vieram tão estridentes quanto deveriam. Ao contrário, naqueles breves intervalos de sombra o que nos veio foi um sussurro ínfimo, uma respiração cortada, um suspiro. E nós, tão impossivelmente felizes, não nos demos conta que a nossa ruína, o motivo do meu desterro, a razão da minha queda, estava ali. Nos prometemos coisas terríveis achando sermos felizes, nos prometemos demais e a eternidade dessas lembranças nos destruiu. Teu corpo desejou liberdade e eu te permiti ir. Agora parto também. Adeus.

3 Comments:

Blogger Zander Catta Preta said...

E cá estou comentando de novo!!

12:28 PM  
Anonymous Anonymous said...

foi mal.. segue o link para o meu blog:

http://www.z-cp.com/

12:28 PM  
Blogger Ana Carolina Braz said...

Eu adoro esse desterro, mas quero ler mais pq você é boa demais!

Mais! Mais! Mais!

10:34 PM  

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