Friday, June 29, 2007

Uma vida desgraçada essa

Uma vida desgraçada essa. Quem poderia imaginar, eu aqui, chegando aos 40 anos e sem rumo. Meus pais me criaram, como era do costume de então, para ser engenheiro, médico, advogado ou funcionário público. Opções demais, percebe? Opções demais.

Eu devia era ter me casado com a... a filha de Dona Constância, a que vivia encima dos muros, aquela... Joana. Esse era o nome. Eu devia ter me casado com a Joana. Ela é como eu, criada solta no quintal, depois no colégio dos padres. Todo dia passava a mãe dela com seu fusquinha ferrado para buscar a gente. Eu, o Tonho e a Maricota íamos atrás pintando a sapequeira, enquanto Dona Constância, sempre atrasada, furava cada sinal amarelo que via na frente. Era a nossa montanha russa de meninada interiorana.

Acho que a Joana acabou se casando pelo Rio mesmo, foi pra lá fazer faculdade e ficou, como muitos que daqui saíram. Ela tinha umas pernas bonitas a danada, mesmo cheias de ralado de tombo, de roxo. Ela era a minha companhia nas artes de quintal, que incluíam: roubar manga do Seu Floriano, caçar galinha d´angola, assaltar a geladeira da mãe dela e espiar a Votiva trocar de roupa. A Votiva era a empregada lá de casa, uma menina pouco mais velha que a gente que a mãe dizia que “pegou para ajudar”. A pobre trabalhava feito um burro de carga e ainda tinha que espiar pelos ombros as artes que eu e Joana aprontávamos.

Tem quem ache a infância a maior das maravilhas, que naquele tempo tudo era melhor, tudo era mais fácil, que o Brasil era mais tranqüilo. Merda nenhuma. Era tudo isso aí, a gente é que via menos coisa noticiada. A ação era mais recolhida. Bom, recolhida mas nem tanto. Quando a gente já estava no ginasial, nem usam isso agora de chamar de ginasial... mas então, foi quando a gente começou a reparar nas notícias de gente sumida, uma família inteira deixou a casa da noite para o dia só porque o pai deu a dizer que o sujeito era comunista. E tinha também ladrão, e morte, e marido pulando cerca.

Será que a Joana ainda está casada? Hoje em dia todo mundo se separa, o divórcio é um negócio tão banal que qualquer dia, pra facilitar as coisas, botam um quadradinho daqueles de teste de vestibular no final da certidão de casamento para o sujeito marcar e pronto, se separa. Ou sei lá, faz feito carteira de motorista, renovação obrigatória de 5 em 5 anos, com direito a todos aqueles testes físico... Será que o casamento da Joana já expirou?

Das opções que os meus pais me deram acabei funcionário público. O problema é que a idéia de funcionário público que venderam para eles, e que alguns idiotas ainda estampam por aí, é a do cara com aquele empreguinho fixo, salário polpudo, vida em velocidade de cruzeiro. Até tem desse tipo, mas eu não dei sorte e dei de cair numa repartição de merda, que vive entupida de papel e cheia de gente buzinando nos meus ouvidos. Pra te ser sincero, ando desconfiado que tem gente que vai lá só para ver qual é. Sabe? Qual é a dessa história de registros e patentes. Tudo um bando de desocupados, uns emprenhadores do ouvido alheio.

Eu acho que vou procurar a Dona Constância para saber da Joana. Quem sabe se ela não está solteira, sozinha... Será que ela ainda tem aquelas pernas?

A gente chegou a namorar no colegial. Mas aí eu fiz a merda de pegar a garota que veio de intercâmbio e que estava hospedada na casa da melhor amiga dela. Estúpido, não? Pois é, foi assim mesmo, estúpido. Claro que a loirinha deu com a língua nos dentes para a amiga, que contou para a Joana. No dia seguinte no colégio me veio ela no meio no pátio e pá, me lascou um tapa. De mão aberta. No meio da cara. Não falou nada, me olhou no fundo do olho, deu meia volta e foi isso. Nunca senti tamanha vergonha em toda a minha vida.

Depois ela namorou meio colégio, só para acabar comigo de vez. Sumiu do portão. Me via e atravessava a rua. Isso por mais uns 3 anos, até que foi estudar no Rio. Daí não vi mais.

Minto, vi sim. Uma vez ela veio visitar a mãe. Estava mudada, mais bonita, cabelo cortado curtinho. Vinha ela e a irmã. Ela me viu, eu já entrando em casa de cabeça baixa quando ela resolveu atravessar a rua para falar comigo. Me disse oi, eu respondi.

“Veio visitar sua mãe?” claro, estúpido, para que mais ela viria?

“Vim sim.”

Silêncio.

“Depois eu passo aqui para a gente conversar” disse, enquanto entrava no portão vizinho.

Nunca mais a vi.

E isso me deixa danado. O que diabos ela queria falar comigo? O que ela queria me dizer?

Isso tudo foi há 7 anos. Caramba, 7 anos.

Acho que vou ligar para Dona Constância.

3 Comments:

Blogger Unknown said...

Que bom menina! Finalmente voltaste pra máquina de escrever:)

Gostei muito do conto, parar e lembrar que já houve quintal, infancia, escola e namoro no meio do dia corrido é muito bom:)

Beijos!

9:35 AM  
Blogger Unknown said...

This comment has been removed by the author.

1:36 PM  
Blogger Unknown said...

Gostei tanto.Tantas lembranças, que me deu vontade que fosse mais longo.
E te digo que deu vontade de colocar em cena,sabe?
Me tocou profundamente.Até chorei!!!rsrsrs!
Ótimo!

1:43 PM  

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