Monday, July 02, 2007

Felicidade

A visão da janela nem sempre conforta. Foi o que ela aprendeu naquela tarde fria de julho. Como de costume, depois de arrumar a casa, Manu foi à janela para respirar. O cigarro ainda fazia falta nesses momentos, pouco mais de três semanas desde a última tragada, a última cinza no parapeito, a última guimba jogada no depósito de lixo coletivo do edifício. Ela se lembra de um vizinho que saía do elevador e testemunhou tudo. Ele era jovem e tinha um olhar de nojo para aquela mulher e seus dedos manchados. “Nunca mais esse olhar de nojo” repetiu para si três vezes. “Nunca mais.”

Largar o cigarro foi a última batalha vencida. Desde então era a vida que ela tentava organizar sem sucesso. Uma vida dividida em partes: o trabalho, que não satisfazia mas pagava as contas; o apartamento, com um contrato de aluguel vencido e um iminente aviso de despejo ameaçando aparecer em sua caixa de correio; a família.

A família era mais uma parte complicada, superando as outras. Tinha a mãe que queria que ela casasse e tivesse filhos logo. “Você não tem mais idade para ficar brincando de namorar, tem que encontrar alguém antes dos 35. Depois fica muito mais difícil, eu sei,eu passei por isso e olha como estou aqui, desquitada do teu pai e sozinha há tanta tempo...” Seria mais fácil se ela dissesse tudo isso, se ela falasse diretamente o que Manu adivinhava em seus olhares de comiseração a cada vez que ela respondia “não, não estou saindo com ninguém”. Mas a mãe se limitava a dizer “Eu só quero te ver feliz”.

“Eu só quero te ver feliz”, toda vez que a mãe dizia aquilo a frase enroscava na cabeça e repetia o dia inteiro, repetia sem parar, como uma acusação de incompetência, uma sentença: Você não é capaz de ser feliz. Então, vinha o inventário. Ano passado foram três casinhos passageiros, dois caras mais sérios e um erro que quase rendeu uma gravidez. E se fosse isso? E se ela ficasse grávida? A mãe com certeza desaprovaria, os olhares de recriminação aumentariam numa proporção que ela não teria como ignorar. Mas depois de nascida a criança a mãe acalmaria, tudo ficaria mais calmo. Com mais um para dividir os olhares talvez a mãe não pesasse tanto.

Instintivamente ela busca alguma coisa no bolso de trás da calça. Era aonde aguardava os cigarros. Ela riu da situação: o cigarro como um pedaço morto da anatomia, respondendo a um estímulo condicionado. Carmem comentou que isso poderia acontecer, disse isso mesmo na semana passada. “Depois de largar o cigarro eu fiquei meses andando com uns palitinhos de madeira no bolso. Toda vez que me dava vontade... não ri não, é sério! Toda vez que me vinha o impulso de puxar um cigarro eu pegava um daqueles palitinhos e colocava na boca.”

“E você acendia?”

“Claro que não, maluca! Eu queria largar o cigarro e não ser imolada em vida!”

As sessões de terapia com a Carmem eram sempre assim, divertidas. Bem, não eram exatamente sessões de terapia: ela gostava de conversar com a amiga e como estava muito sem grana para bancar uma psicóloga acabava aproveitando para fazer sua higiene mental. De seu lado, Carmem aproveitava para praticar antes do diploma sair. Era sua segunda faculdade.

“E voltar a estudar?”

“O que?”

“Você não me disse que estava pensando em voltar a estudar?”

“Não sei se isso resolveria alguma coisa... No seu caso sim, você sempre quis a psicologia e agora está podendo bancar a faculdade. Mas eu? Eu estou muito velha...”

“Ah, sei, então eu sou o que? Anciã? Você acha que é fácil atravessar aquele corredor e ver um bando de carinha adolescente, de cinturinhas mínimas e bundinhas em pé? Olha pra mim! Eu trabalho o dia todo, vou direto para o campus e ainda tenho que ver o marido no final do dia!”

“Mas você é você, Carmem. Eu não tenho essa força.”

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A janela do apartamento dá para uma pracinha agradável, onde as babás da vizinhança vão levando suas crianças. Elas chegam por volta das quatro da tarde e ficam até de noitinha. Todas com seus carrinhos, bolsas, mamadeiras de água.

Elas sentam nos bancos da margem direita, os que dão de frente para a caixa de areia e o cercadinho dos brinquedos, largam as crianças soltas e começam a conversar. Elas formam uma espécie de clube de moças, todas com seus códigos de conduta, sua hierarquia, seus procedimentos padrão. Se chega uma moça nova ela começa sentando nos bancos mais afastados, os da esquerda. Depois, é convidada a se juntar a um dos pequenos grupos periféricos, até ir aos poucos galgando suas posições e poder freqüentar o grupo do meio, a elite das babás.

Vez por outra uma mãe resolve levar a criança, mas o grupo está preparado para isso. Nesses dias as moças abrem espaço para a mãe, deixam-na pensar que também é parte do grupo, ciceroniana pela babá de seu filho ou filha. Mas as conversas paralelas são adiadas, os desabafos, os códigos, tudo protegido da visão estrangeira.
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“Tem horas que eu penso ser isso.”

“Isso o que, Manu? Ser babá?”

“Não, o que eu quero: fazer parte de um grupo, ter uma rotina, conversar com as amigas. Pertencer a algum lugar.”

Talvez seja isso, a felicidade.

5 Comments:

Blogger diego said...

ou talvez isso seja apenas uma idéia de felicidade; talvez seja apenas mais uma coisa ali na esquina.
´ótimo texto, cara!!! feliz é estar aqui.
;)

5:23 PM  
Blogger Ana Carolina Braz said...

gostei Robita! de verdade:)

1:59 AM  
Blogger Unknown said...

eh!realmente talvez seja isso a tal da felicidade, momentânea,claro. mas é.muito bom! OBS:o apelido da minha irmã é manu.

1:22 PM  
Blogger Unknown said...

This comment has been removed by the author.

1:23 PM  
Blogger Unknown said...

eh!realmente talvez seja isso a tal da felicidade, momentânea,claro. mas é.muito bom! OBS:o apelido da minha irmã é manu.

1:24 PM  

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