Sunday, March 29, 2009

Lobo do homem

Então vamos aos pormenores - falou e tomou uma imensa pausa antes de dizer- O homem é sempre lobo do homem.
- Mas isso não é pormenor, é generalismo!
- Não nesse caso, meu bem, não nesse caso.

Aconteceu assim: dois dias depois do contrato assinado veio ter comigo o tal Manuel Osório. Sujeitinho de bom trato, homem franzino de uns óculos frágeis no rosto e aparência amigável. Tipo do sujeito que não oferece perigo. Foi ter comigo para dizer que estava muito feliz em se juntar à firma, que vinha de longe seu desejo de entrar para os negócios de seguro - tinha uma certa pompa no falar o tal sujeito - e que queria contribuir de toda forma possível para o progresso da empresa. Percebi de cara que era um sujeito bom de se trabalhar, sem perguntas demasiadas, sem indiscrições, um cara em quem eu podia pensar quando precisasse. Esses homens que a gente conta como invisíveis, mas que fazem a máquina mover.

Na primeira chance que lhe dei o tal se saiu bem. Era um caso intrincado de disputa, cheio de farpas, documentação esculhambada, caixas e caixas de papéis desdizendo outros papéis e afirmando terceiros: o usual. Um espeto, como diria o saudoso superintendente Jonas.
Pois não é que o sujeitinho deu conta? Amarrou-se aos códigos como um náufrago ao mastro do navio e com uma paciência de Jó foi desatando nó atrás de nó, sem descuidar da viúva, uma senhorinha daquelas impertinentes que sabe atasanar a paciência do cristão até ele virar ateu. A velha tomou-se de amores pelo Manuel! Não fosse a idade e a cara eu era capaz de jurar que os métodos de persuasão do sujeito tinham incluído uns passeios suspeitos com a velha. Mas nada, tudo ali, no gogó, e o cara desenrolou o enrosco. Foi digno de nota, dos outros sujeitos ficarem até meio invejosos e começarem a falar que eu estava protegendo o Manuel. Pois eu te digo, protejo sim quem sabe trabalhar, mais ainda quem enfrenta o dragão - e a velha era um dragão! - e não reclama.

Segundo trabalho, mesma coisa. O cara era bom. Já estava me perguntando onde achar mais desses sujeitos. Uma firma deles e eu me aposentava uns 5 anos mais cedo, com direito a casa na praia. Trabalhava sem reclamar, cumpria com o que dizia, aumentava a clientela - a velha não chamou para um chá e do chá ele não veio com mais duas clientes? Era um papa-velhinha o sujeito! Nenhuma passava impune! Devia ser a cara de coroinha, sei lá eu, eu sei que os negócios cresciam e eu vi que o sujeito era mesmo bom. Bom de verdade.

Daí veio aquele caso que te falei. O da mulher do coronel? Olha, não vá ficar ofendida com isso, mas a mulher era um...
- Você já disse.
- Disse? Mas era. E era mais. Todo mundo querendo atender, um frege no escritório. Mas ela era amiga da velha-dragão e foi direto na mesa do Manuel. Se a mulher fosse de cera aquele dia ela tinha derretido de tanto que os sujeitos olhavam para as pernas dela. Eram um...
- Sim, mas e daí?
- Daí que o Manuel começou suas atividades de sempre. Se enfurnou com os papéis, catou todos os códigos, grifou todos os pormenores, gastou tempo mesmo. Nada diferente das velhas, ali, firme, jogando duro. Admirei o rapaz. É admirável quem é capaz de se dedicar assim com uma distração daquelas no caminho.

Mas eu estava dizendo... sim, trabalha o sujeito como um mouro, levanta toda a informação e leva o caso adiante. O assunto até nem era simples, mas também nem tão complicado assim. E...
- E...?
- Nada. Dá com os burros n'água. Um azar. Acontece. O documento que ele precisava para fechar as negociações só tinha como sair dois dias depois do prazo. Ele apelou mas nisso a burocracia também não faz diferença entre ninguém - isto é, entre ninguém que não tenha um peixe grande para acudir - e nada do caso da moça, digo, da viuvinha lá se resolver. Tentou acudir de todas as formas, se pendurou no telefone, mas sem favores a colher tem hora que não dá mesmo. Finalmente veio a mim pedir conselho.

- O caso é, seu Sampaio - ele me disse - o caso é que eu não tenho mais o que fazer. Emperrou. Não tenho mais o que fazer.
- Já explicou para a moça a situção?
- Sim, mas isso não ajuda. Ela depende da solução para tocar a vida, está sem meios de manter a casa enquanto não resolvermos essa pendenga. É de dar pena.
- O caso é assim grave então?
- É, é grave. Eu já andei lhe emprestando o que pude de umas economias, mas nada de se resolver e estou vendo que nem tão cedo.
- É, decurso de prazo é um problema incontornável... pelos meios legais.
Te juro que quando falei isso o sujeito ruborizou, meu bem, ruborizou! Mas veio a pergunta

- ... e quais os outros meios?
Falei então dos meus conhecimentos no meio, de como tinha crescido graças ao Jonas na vida e como devia a ele tudo o que sou. Que nesses meios tudo é uma questão de gratidão, que sendo grato aos que te estendem a mão teu caminho é só pra cima. Falei que tinha uns conhecidos que podiam ajudar, ainda mais...

- ... ainda mais?
- Olha, não quero ser grosseiro, mas a tua viúva é um pedaço de mau caminho e isso ajuda a amaciar os caras.
- Mas...
- Não , não , nada disso. É que os caras são vaidosos, e saber que prestam favor a uma mulher... com o perdão da palavra, mas ... sejamos sinceros, a uma mulher gostosa daquelas enche os homens de boa vontade.
- Mas eu não posso expô-la assim.
- Não, não , não. Não me interprete mal. Basta levá-la contigo nas negociações. Deixe que eles vejam. Ela também não me parece ser uma mulher sem consciência dos dotes, não teria casado com um coronel assim.

O sujeito ficou quieto. Estudou, pensou, e uns quatro dias depois me procurou.

- Conversei com a cliente e ela concorda com a nova abordagem.
- Que nova abord... ah, entendi.

E deu-se como expliquei a ele, uns favores aqui, leva a moça para passear, deixa os homens babando, acena levemente com a promessa de gratidão de uma viúva daquelas e pronto, negócios encaminhados. Mas...

- ...mas?
- Azar de novo. Outro entrave na documentação. Não fosse quem era eu ia jurar que era descuido, mas o Manuel era bom com essas coisas de papelada. Ele parecia entender a cabeça do papel, entrar mesmo na coisa e descobrir uma lógica no meio de toda aquela baderna. Acontece, azar.

A esta altura eu mesmo já tinha me chegado para conversar com a moça. Não me olhe assim, só conversa! Enfim, papo vai, papo vem e ela toda cheia de pudores, mas eu sabia que ela estava precisada de um dinheiro. Passei um cheque, ela toda preocupada
-Mas os senhores já fizeram tanto por mim...
- Deixe de bobagem , moça. Não tem por que ficar passando aperto com o que tem a receber. Considere isso um adiantamento que nós daqui incluímos nas despesas da firma. E ela, muito relutante, aceitou o dinheiro.

- Sei...
- Olha, até você ia gostar se conhecesse a moça.
- Duvido!
- Ia sim, ia. Era dócil, educada, muito gentil. O oposto da velha-dragão, que parece que era vizinha dela ou algo assim.

Pois aí entramos nesse círculo de burocracias. Parecia que tinham rogado praga, era um empecilho atrás do outro, e a moça já estava que não podia mais. E nós investindo nela... no bom sentido, ajudando a pobre. Chegou até a se oferecer para trabalhar no escritório para compensar as despesas, mas era já tanto que eu achei por bem deixar as coisas separadas. Quando o dinheiro do coronel finalmente saísse seria o suficiente para cobrir e ainda nos dar algum lucro. E suas visitas semanais eram agradáveis. Era bom para os ares daquele escritório cheio de papéis ver a moça cruzar os corredores, os outros sujeitos da firma se animavam. Eu me considerava um promotor do bem estar psicológico dos meus funcionários, fazia bem à moral deles.

O Manuel coitado, pegava uns outros casinhos mas sua maior dedicação era mesmo à viúva. Eu já tinha visto sujeito desmontar por conta de fracasso, mas esse não aceitava a possibilidade. Ele lutava pelos papéis como quem luta pela vida. A esta altura ele já tinha apelado para todos os meus contatos e a viuvinha era motivo de louvor em nossa lista de clientes. Os homens, quando eu ia ter com eles, sempre se interessavam pelo andamento da coisa. Mais pelo da viúva, verdade, mas a lembrança era boa para o caso, então que fosse.

Um dia veio a notícia: saiu o parecer. O Manuel correu para ver qual o resultado. Nunca vi tão animado. Nisso vem chegando a viúva. Ela passa e eu pensando, deve ter saído, essa é a última vez que ela cruza esses corredores. A viúva se senta na sala e pergunta do caso. Eu...

- Você...?
- Eu desconversei em princípio. Queria aproveitar aquela última vez que a via - eu estava certo disso - e comecei a falar de tudo que se passou naqueles meses de convivência. Ela começou a se mostrar preocupada e disse que sabia o quanto devia a mim e ao Manuel, que não sabia o que seria dela sem a nossa ajuda.
- Pobrezinha...
- ... que tinha tudo anotado num caderninho na bolsa e que pagaria tudo, tudo o que nos devia. Foi ai que eu fiz a besteira. Disse que ela não precisava dever nada, que eu podia esquecer tudo se ela me fizesse uns favorzinhos. Não fique assim, meu bem, eu era um homem mais impulsivo naquela época, hoje só tenho olhos para você...
- ...
- Ela recusou... em princípio. Foi ficando vermelha e aquilo me deixava ainda mais falante, eu dizendo que a admirava, que achava que ela tinha uma postura admirável diante de toda a bagunça que estava sua vida, que ninguém a recriminaria por nada daquilo. E ela calada. Eu estava a ponto de mandar a sujeitada de fora toda para casa e pegar aquela viuva ali mesmo, mas sou um cavalheiro e nunca avançaria sem o consentimento dela. Pois tanto falei, tanto falei que ela disse... está bem. Olha, eu queria soltar fogos de artifício.
- Poupe-me de detalhes...
- Então está bem. Está bem, está bem, perdoei as dívidas e durante mais uns meses acertei com ela tudo o que nos devia. O Manuel ainda atrás do bendito parecer que não saía e eu com a viúva. Comecei a emprestar mais, dava presentes que ela tinha a discrição de usar só quando nos víamos. Comecei a tirar dinheiro do caixa para bancar a viúva. Como a contabilidade era minha não era difícil mascarar tudo no meio dos dados da firma.

Nisso, claro, continuamos trabalhando lá em outros casos. A firma estava um azougue, tinha cliente saindo pelo ladrão. E eu a mimar a viúva. O Manuel começou a pegar outros casos e voltou a ganhar, coisa que acho que fez bem a ele. A viúva agora ia menos ao escritório, mas recebia seu soldo... e as minhas visitas.

No fim daquele ano a empresa programou um grande jantar. Era para celebrar os ganhos e agradar aos que nos ajudaram naquele tempo. Iam estar lá todos os sócios, os amigos dos sócios e os que mandavam. Então era tudo festa. Depois da festa para a geral um grupo nosso menor ia para um piano bar para o nosso "balancete anual". Era o momento dos sócios seniors falarem bobagem, contarem vantagem, enfim, papo de homem. Um dos sócios me pediu para chamar o Manuel para a roda. Ele me disse da intenção de fazê-lo sócio da firma e eu fiquei, te confesso, ainda mais feliz. Afinal eu contratara o sujeito, tinha ensinado os caminhos para subir e sabia que isso podia me tornar mais forte diante dos outros. Meu ego estava nas nuvens.

No bar pedimos umas garrafas de blue label, gelo e uns charutos. Fazia parte do ritual. Começávamos com uma dose e daí abríamos a carta de bebidas para ver o que tinha. Tudo ali era para ser regado ao que havia de bom e de melhor. O maitre já sabia e se adiantava arrumando tudo, copo de cristal, prataria, coisa que eles não tiravam do canto para ninguém, exceto para o nosso seleto grupo. Parte dos lucros do ano eram gastos naquela noite com gosto.

Sentamos todos, éramos uns 8 aquela noite, mais o Manuel. Este até parecia outro homem se comparado com aquele sujeito franzino que entrara na minha sala um dia. Parecia ter ganhado peso, talvez fosse o corte do terno. O óculos era mais moderno, o cabelo mais ajeitado, não sei, o sujeito estava virando gente. E sabia falar o desgraçado! Os outros sócios riam de dar gosto com as piadas dele, era bem articulado, ainda que um pouco posudo demais para o meu gosto, mas agradava. E ficamos lá, falando de ganhos no mercado de ações, investimentos, rendimentos, dividendos. Era uma grande competição de quem podia mais, quem era o maior... é, o maior comedor da paróquia. E eu quieto, não podia entregar a viúva, isso era arriscar demais. Mas os comentários chegaram ao assunto. E os sócios, todos querendo saber da viúva, se dirigiram ao Manuel. Achei que o sujeito ia ficar vermelho, desconversar, como já tinha visto algumas vezes... nada! Falou, disse que era isso e aquilo, que era com prazer que ele se dedicava ao caso, que era um prazer ter audiências com ela, que era um prazer... e aquilo me deixou confuso. Então o Manuel também visitava a viúva? Era isso? Não precisei perguntar...

- ...mas eu só conheço a estampa. Quem entende mesmo da viúva é o Sampaio.

Eu não sabia onde me enfiar... foi uma disparada de perguntas, todos querendo saber detalhes, todos ávidos por um pedacinho da moça. E a vaidade e a bebida me fizeram cuspir tudo, eu me sentido o maioral, comendo a mulher admirada por todos, não segurei a língua. Fui um idiota. O Manuel escutou tudo aquilo muito contente, achei que fosse uma retribuição, que ele estivesse ali abrindo espaço para meu ego passear, e se fosse isso se mostrava de novo um sujeito bom, o pavão gosta de se exibir de vez em quando. E eu pensando, mas eu ensinei muito bem a esse rapaz, ensinei bem, ensinei...

- Mas peraí, Sampaio, e a contabilidade da viúva, como anda?

Eu fiquei mudo. Foi aí que me bateu: esse cara vai me ferrar. E começou a falar do que eu tinha feito. Catou de dentro de uma pastinha fétida que eu nem tinha visto com ele uma cópia do livro caixa e saiu mostrando para os sócios. Eu tentei protestar, dizer que aquele não era momento para isso, mas nada. O tempo fechou, os sócios todos emudeceram. O infeliz rastreou cada presente, cada retirada, cada coisinha que fiz para a viúva. Era despeito, devia ser. Não teve colhões para comer a viuvinha e agora estava se vingando em mim! Como eu fui estúpido!

No fim, os sócios me pediram para sair da sala. Eu, expulso do meio dos meus pares por aquele borra botas! Por aquele sujeitinho medíocre que não era capaz de erguer os olhos quando eu conheci! Agora era outro, me olhava confiante, desafiando mesmo. Será que eu me enganei tanto assim? Esse sujeito não foi o que eu contratei. Eu, que já tinha bebido muitas, resolvi ficar na porta e esperar para tirar satisfações. Quem ele pensava que era? Eu que o acolhi, que fiz ele crescer! Quem ele pensava que era?

Me escondi dos sócios e vi ele saindo sozinho com a sua pastinha debaixo do braço.
- Queria mesmo falar com você. Não procure mais a Beth. Ela me pediu para te dizer isso.

E saiu. Ah, mas eu queria, eu queria...

- ...ter menos idade para partir pracima dele. Mas não tinha. Não tem.
- É, meu bem, acho que você tem razão. Eu fui um covarde. Nem um surra no sujeito consegui dar. Fui pra casa, da casa para o escritório. Nem me deixaram entrar. Uma caixinha vagabunda de papelão com a secretária, meia dúzia de tralhas, tudo o que me deixaram levar. Eu protestei, mas chamaram os seguranças. De novo, um covarde. Procurei a Beth, a minha viúva. Ela tinha se mudado. Trocou telefone, tudo. Passei no prédio e o porteiro me disse que o caminhão de mudança tinha saído de manhã cedinho.

De caso pensado. Aí veio o último golpe: caso pensado, e eu caí feito um pato! Eu, um pato! A viúva nem devia ser viúva. Fui ver e tinham pedido - ele tinha pedido - o arquivamento do caso na semana anterior. Tudo de caso pensado...

- ... você está bem?
- Estou, estou... não, mas vou ficar.
- Se quiser nós podemos tentar...
- Não. Agora não.
- Então tenta dormir. Esquece isso.
- Um dia. Um dia eu esqueço.

1 Comments:

Blogger Flavio Pessoa said...

Excelente! Gostei muito mesmo, minha rodrigueana preferida. Bjs

7:06 PM  

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