Wednesday, July 04, 2007

Creolina

O cheiro de limpeza dos banheiros entra pelas narinas e gruda. Todo fim de treino é assim. Joana não faz questão de pressa, toma seu tempo e prolonga os tiros finais de 500 metros. A piscina do clube não é aquecida e a maioria, ao contrário de Joana, corre para terminar o exercício o mais rápido possível, nesse final de maio anunciando inverno. Mas ela não.

Para Joana, a piscina é o seu momento de reflexão. Não que tivesse uma noção exata do que era reflexão da altura dos seus 15 anos, era algo mais intuitivo do que propriamente planejado. Sabe apenas que durante as braçadas ela se sente leve, fora do mundo, numa paisagem infinita de sons abafados e azulejos. A interrupção das viradas não interrompe; são como o tiquetaquear de um relógio, marcando intervalos regulares que prolongam o tempo infinitamente.

O Carlinhos, sabendo desses costumes da aluna, dava sempre uma última chamada. “Faltam cinco” querendo dizer cinco piscinas para completar o último tiro, ou “faltam 2 inteiros” quando ela deixava o ritmo mais solto, ou ele dispensava a equipe antes. Mil metros pela frente, 20 vezes a piscina, vinte toques na borda. Tinha a impressão que tudo poderia estar diferente quando terminassem os mil metros.

E poderia mesmo estar diferente. Ela poderia sair da piscina e ver no visor do celular uma ligação perdida. Dele. Sabia que era difícil acontecer, que ele sabia dos horários de treino e não ligaria quando soubesse que ela não pode atender. Mesmo assim ela fantasiava uma ligação perdida. Uma mensagem de voz.

“Oi Jô. É que deu saudade. Sei que você está aí no clube. Me liga quando der, ok? Beijo.”

Oi Jô. Beijo. Não era ele. O Rico nunca na vida deixaria um recado assim. Deve estar pendurado na internet, nem lembra dela. Nem chance.

Ou poderia ser outra a ligação. Do seu pai. Esse também sabia dos horários, mas nunca lembrava, ainda mais agora. “Oi filha, tô ligando para saber como você está. Aqui em Londres tá um dia maravilhoso, queria que você estivesse aqui. A Sônia tá te mandando um beijo. Saudade.” Esse ela não sabia se queria ouvir. Com certeza era a Sônia instigando o pai a ligar, do lado dele, aprovando as palavras com um sorrisinho. A quem ela quer enganar? O pai se separou por causa dela e agora mora do outro lado do Atlântico.

“É uma oportunidade imperdível, filha. Eu preciso mesmo ir.”

Precisa ir para longe porque não ia agüentar aqui com a mãe olhando para o casalzinho. E me deixam com a bomba na mão.

Onze. Faltam dez para terminar.

Ela queria o pai por perto. Precisava dele. Ele a convidou para morar por lá, passar um ano fazendo intercâmbio. A Sônia ia agitar tudo numa escola pertinho do apartamento deles. E a mãe? O que fazer com a mãe? Deixar ela destruída no Brasil? Fazer feito ele, ligar o foda-se e tocar a própria vida? Como?

Joana se lembra ainda. Chegando em casa da natação e aquele cheiro pela casa, um cheiro esquisito. Ela correu para a área de serviço e lá estava a mãe, caída no chão frio, muito, muito branca. Ela não se mexia. Ligou para a madrinha.

“Oi querida, tudo bem?”

“Não tia. Não tá não. Mamãe tá no chão, branca. Tia, ela nem se mexe!”

“Tô indo praí. Não mexa nela.”

No tempo que a tia levou para percorrer as três quadras que separavam as casas, Joana se sentou ao lado da mãe. Estava tão frágil, tão mole jogada naquele chão branco. Ela pegou uma das toalhas da pilha de roupas e colocou sob sua cabeça. Pegou nas mãos dela, frias, e segurou. E segurou. Uma piscina, duas piscinas. A tia que não chegava. Três, quatro, cinco piscinas. Naquele momento era ela nadando o que via, era a calma de que precisava. A mãe estava lá na borda, torcendo por ela, como nas competições. Seis, sete piscinas. O tempo suspenso enquanto não vinha o socorro, o tempo infinito de entre as braçadas e a certeza de ver a mãe de novo. Respirar.

Hoje a mãe está bem. Tia Marta conseguiu fazê-la vomitar o produto de limpeza engolido. “Que distração, minha filha. Confundi o copo d’água com o de alvejante. Não fosse você chegar eu não sei o que seria de mim.” A mãe a fez prometer, jurar que não contaria ao pai. “Se ele souber ele pode te tirar de mim, entende? Você quer isso?” Mas essa não era uma pergunta.

Cinco.

Joana não queria mais pensar naquilo. Não queria mais pensar. Eram os últimos metros. O Carlinhos sempre pedia para ela acelerar nos últimos metros, era o sprint final. Para parar de pensar ela começou a contar as braçadas.

Um dois três quatro respira
Um dois três respira
Um dois três quatro respira

Duas piscinas, os 100 metros finais. As braçadas iam num ritmo cada vez mais forte, ao ponto de Joana não entrar com os braços na água: ela a socava.

Última batida, toque no cronômetro, respirar. Era o seu melhor tempo em meses. O treinador vai gostar de saber.

Já era tarde quando saiu da piscina. As luzes do clube estavam quase todas apagadas e o pessoal da limpeza terminava de arrumar as instalações para o dia seguinte. Da porta do banheiro ela viu a faxineira, uma senhora, limpando o chão.
“Vai entrar minha filha?”
“Não, acho que vou tomar banho em casa.”

Monday, July 02, 2007

Felicidade

A visão da janela nem sempre conforta. Foi o que ela aprendeu naquela tarde fria de julho. Como de costume, depois de arrumar a casa, Manu foi à janela para respirar. O cigarro ainda fazia falta nesses momentos, pouco mais de três semanas desde a última tragada, a última cinza no parapeito, a última guimba jogada no depósito de lixo coletivo do edifício. Ela se lembra de um vizinho que saía do elevador e testemunhou tudo. Ele era jovem e tinha um olhar de nojo para aquela mulher e seus dedos manchados. “Nunca mais esse olhar de nojo” repetiu para si três vezes. “Nunca mais.”

Largar o cigarro foi a última batalha vencida. Desde então era a vida que ela tentava organizar sem sucesso. Uma vida dividida em partes: o trabalho, que não satisfazia mas pagava as contas; o apartamento, com um contrato de aluguel vencido e um iminente aviso de despejo ameaçando aparecer em sua caixa de correio; a família.

A família era mais uma parte complicada, superando as outras. Tinha a mãe que queria que ela casasse e tivesse filhos logo. “Você não tem mais idade para ficar brincando de namorar, tem que encontrar alguém antes dos 35. Depois fica muito mais difícil, eu sei,eu passei por isso e olha como estou aqui, desquitada do teu pai e sozinha há tanta tempo...” Seria mais fácil se ela dissesse tudo isso, se ela falasse diretamente o que Manu adivinhava em seus olhares de comiseração a cada vez que ela respondia “não, não estou saindo com ninguém”. Mas a mãe se limitava a dizer “Eu só quero te ver feliz”.

“Eu só quero te ver feliz”, toda vez que a mãe dizia aquilo a frase enroscava na cabeça e repetia o dia inteiro, repetia sem parar, como uma acusação de incompetência, uma sentença: Você não é capaz de ser feliz. Então, vinha o inventário. Ano passado foram três casinhos passageiros, dois caras mais sérios e um erro que quase rendeu uma gravidez. E se fosse isso? E se ela ficasse grávida? A mãe com certeza desaprovaria, os olhares de recriminação aumentariam numa proporção que ela não teria como ignorar. Mas depois de nascida a criança a mãe acalmaria, tudo ficaria mais calmo. Com mais um para dividir os olhares talvez a mãe não pesasse tanto.

Instintivamente ela busca alguma coisa no bolso de trás da calça. Era aonde aguardava os cigarros. Ela riu da situação: o cigarro como um pedaço morto da anatomia, respondendo a um estímulo condicionado. Carmem comentou que isso poderia acontecer, disse isso mesmo na semana passada. “Depois de largar o cigarro eu fiquei meses andando com uns palitinhos de madeira no bolso. Toda vez que me dava vontade... não ri não, é sério! Toda vez que me vinha o impulso de puxar um cigarro eu pegava um daqueles palitinhos e colocava na boca.”

“E você acendia?”

“Claro que não, maluca! Eu queria largar o cigarro e não ser imolada em vida!”

As sessões de terapia com a Carmem eram sempre assim, divertidas. Bem, não eram exatamente sessões de terapia: ela gostava de conversar com a amiga e como estava muito sem grana para bancar uma psicóloga acabava aproveitando para fazer sua higiene mental. De seu lado, Carmem aproveitava para praticar antes do diploma sair. Era sua segunda faculdade.

“E voltar a estudar?”

“O que?”

“Você não me disse que estava pensando em voltar a estudar?”

“Não sei se isso resolveria alguma coisa... No seu caso sim, você sempre quis a psicologia e agora está podendo bancar a faculdade. Mas eu? Eu estou muito velha...”

“Ah, sei, então eu sou o que? Anciã? Você acha que é fácil atravessar aquele corredor e ver um bando de carinha adolescente, de cinturinhas mínimas e bundinhas em pé? Olha pra mim! Eu trabalho o dia todo, vou direto para o campus e ainda tenho que ver o marido no final do dia!”

“Mas você é você, Carmem. Eu não tenho essa força.”

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A janela do apartamento dá para uma pracinha agradável, onde as babás da vizinhança vão levando suas crianças. Elas chegam por volta das quatro da tarde e ficam até de noitinha. Todas com seus carrinhos, bolsas, mamadeiras de água.

Elas sentam nos bancos da margem direita, os que dão de frente para a caixa de areia e o cercadinho dos brinquedos, largam as crianças soltas e começam a conversar. Elas formam uma espécie de clube de moças, todas com seus códigos de conduta, sua hierarquia, seus procedimentos padrão. Se chega uma moça nova ela começa sentando nos bancos mais afastados, os da esquerda. Depois, é convidada a se juntar a um dos pequenos grupos periféricos, até ir aos poucos galgando suas posições e poder freqüentar o grupo do meio, a elite das babás.

Vez por outra uma mãe resolve levar a criança, mas o grupo está preparado para isso. Nesses dias as moças abrem espaço para a mãe, deixam-na pensar que também é parte do grupo, ciceroniana pela babá de seu filho ou filha. Mas as conversas paralelas são adiadas, os desabafos, os códigos, tudo protegido da visão estrangeira.
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“Tem horas que eu penso ser isso.”

“Isso o que, Manu? Ser babá?”

“Não, o que eu quero: fazer parte de um grupo, ter uma rotina, conversar com as amigas. Pertencer a algum lugar.”

Talvez seja isso, a felicidade.