Tuesday, January 14, 2003

Nas tardes desertas
Enchergo teu rosto
Nos desenhos de areia

O dia continua vindo
Redondo e azul
Com gosto de boca

Bocejo para o sol
Deixo cair meu livro
Sinto sombras de aragem

Calvos homens mansos
Adiantam o passo apressado
Rumo à ausência de luz

Meus braços estão frouxos
Deixo escapar suspiros
Caminho largamente pelas ondas

A lua é morna
O instante é eterno
Vagueio sozinha
Seu coração carrega
uma bomba que não explodiu
Ela deixa a porta aberta ao passar
Deixa a caneta aberta
secando a tinta
à espera da palavra
tem vergonha de escrever em público
mas escreve

Adora a banca de flores da esquina
e a manhã sem começo
e o raiar do dia
Deixa poemas inacabados
e ouve música estrangeira
para se distrair

Não tem pena, cadernos
ou palavras castiças
derrama o sal
dos humores de pele
deixa digitais nos vidros
tira aço de agulhas

Consome a vida aos bocados
em bandejas de reluzentes
doces de sobremesa
Quando eu acordo e o meu corpo chora
Vida, homens, mágoa, solidão,
Quando eu acordo e o meu corpo água
Limpa, móvel, rápida expansão,
Quando acordo e não sou nada
e o lençol estendido das horas
me convida ao sono e eu digo não.
São minhas as entranhas que rangem
Geme o gênio ruim que mora no estômago,
algo me impulsiona para fora de mim
para fora da casa, para a lida
Quando eu acordo o que me faz levantar
Não é a vingança da morte
é a constante ciência da vida.
Falas do amante ideal II

Parece uma pintura art nouveau
tuas pernas contra o vidro
parece recorte.

(Nas noites caladas
em que ouço teu grito sufocado
desenhando com as mãos tuas pernas
ascendo degraus de beleza)

Quando o dia vem
deixando escapar teu ar de cabíria
seguro ainda entre as mãos
o molde do teu corpo
e rezo, sagrado.
pontes, ilhas, lagos
o espelho reflete molhado
céus, nuvens, telhados
as estrelas se esbarram no escuro
as linhas se cruzam no abraço

os corpos

os corpos de amam no espaço
Sonhei que era um gato
e pulei para fora do sonho
mas tive um medo medonho
de deixar de ser sonho.
O gato pulou de volta
fiquei na cama, lambendo a pata
(resquícios de gata)
A noite aberta construiu milagres
e era só de forças a mão abandonada
os calos volumosos sobre o médio
o cheiro de tinta e suor de morto
os olhos baços misturando tudo
espreguiçando ainda pela janela
o sol não vem
o sol não vem

Sem os calços de madeira
as portas batem-se incontinentes.
é só a brisa da manhã entrando
fria e pálida de noite
pelas frestas da minha casa.
A gestação da palavra é lenta
demora consumi-la ao acaso
demora descobrir-lhe segredos
há que se ter paciência…
A palavra é cara
custa cabelos brancos
e anos de papel e tinta

Mas, o que posso fazer?
Meu amor por ela é maior que o mundo
Meu amor por ela…
(espamos, contração)

Nasce a palavra fogo
Nasce de novo, vemelha e quente
Sobre a camisa amassada.
Palavra nasce de madrugada,
de vinho, sono e boemia.
Não tenho nada no mundo
Nem os castelos de ondas
nem os arcos do beiral
vivendo assim a liberdade
de leve e inconstante vendaval

Se ainda guardo alguma coisa
para uso egoísta e sensual
dessa minha varanda varanda,
dos meus livros de nada
do pezinho de avenca,paisagem brotada,
dessas partículas de dia
que me prendem ao real

se ainda carrego comigo
algum pertencimento
fora umas tantas linhas de Cecília
e um Drummond desbotado
de esquecimento

é tudo em forma de imagem
grudada na pálpebra solstícia
desfeita em peso de aragem.

Só o que guardo do mundo:
lembranças de viagem.
Falas do amante ideal

Uma forma de expressar teus seios
é dizê-los redondos,
fartos seios de deusa
Uma certa forma
é dizê-los lassos
descarnados de tão leves
sobre teu colo largo
queria talvez expressá-los molde
de uma taça secreta de um vinho cerimonial
deveria dizê-los amados
folgados entre meus dedos
altivos e moles
e doces de chupar
dizê-los já não basta
é preciso provar.
planejei muitas festas não idas…
muitas noites dormidas
sob a constante vigília
de olheiras dissidentes
todos os dias pela manhã
lá estão elas
a espreita de meus
olhos encachaçados
saltando do meu toucador
olheiras severíssimas
arroxeadas
que só me abandonam
em seus dias de
descaso regulamentar.
Entre os travesseiros
em que escondo meu rosto
descansam restos de sonho.
Tudo no quarto é claro
em meus olhos feitos de espelho
tudo que cabe na cômoda,
até os dispensáveis estados de ânimo,
até as fotos na parede,
arrumadas com algum critério,
sorrindo nos instantes de luz.
Permanentes, constantes.
(vão amarelar… como as folhas de cadernos velhos vão entristecer)
Hoje eu não estou para ninguém.
Quero deixar o mundo lá fora.
Não estou aqui. Não sou eu.
Sou todas as imagens que quero ver.

Hoje o mundo paralisa o ponteiro no instante da hora.

Hoje sou de novo criança
recém nascida num berço de palha
hoje sou de novo pequena
entre o mistério da noite, o medo e a coragem do instinto de fadas.

Hoje sou mais a minha avó
escolhendo cores que pintar
os olhos dos santos,
sou mais as folhas verdes da infância,
sou cardume de madrugadas lisas,
sou colapso de estrelas mortas,
sou tudo menos o que sou…
pequena, acanhada, estranha,
espantada com o mundo e
com medo da morte.

Hoje eu sou o mundo.
Leio Adélia nas entrelinhas
Ainda estou muito confusa
(levanto ou sento?
escrevo ou exercito?)
O rumo – incerto –
percorrendo minha letra.
Nem esta certeza:
a letra é fogo e se apaga.

Escrever necessita fôlego.
Prendo uma ardência
por detrás dos olhos
prendo uma ânsia
de andar descalço
que me faz mancar
meio andando de banda
meio requebro de vaidade.

Precisamente onde começa a escrita?
Na folha? Nos olhos?
Na carne dessalgada?
A escrita é feita de pausas
assim como o poeta, de nadas.
O regaço das infinitas fomes
debaixo da sombra da azaléa
plantada entre o céu e o monte
coberta de nuvens e, no entanto, terrena.

Mais acima percorrer tranqüila
a branquidão serena.
Tudo silêncio de madrugadas
nenhum’alma, nada se levanta
e o sol espalha a vaga.

Lembro da sombra de volta,
aquele gosto de relva na espalda
aquele resto de nada.

Infância boa, de dias calmos e úmidos
solitária, prazenteira, larga.